quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

23 fotos no perfil




Já se foram 23 fotos no perfil, 23 versões diferentes de mim e, provavelmente, 23 fases diferentes da minha vida, desde aquela com as flores do campo que me destes. Como muda um ser humano em alguns meses! Por tanto que mudou, por tudo que não sou mais ou que acreditei que não mais fosse, eu não esperava escrever de novo sobre ti. Tu, cuja lembrança já não mais me assombrava. Tu, cuja aparição repentina, em caso de nos cruzarmos em dia qualquer, acreditei que não mais me amedrontaria.

A mim vieste com tuas amarguras e eu, que estivera sã, que me sentira então finalmente inteira, eu me vi em ti. Éramos, um do outro, espelho.

Antes, há muito tempo, eu me perguntava por que havia gente que escrevia sobre suas dores e publicava ao mundo para que todos soubessem que ali jazia um coração. Com o tempo entendi que somos todos espelhos. A dor que senti outro também sentia, a minha dor não era somente minha. Não é reconfortante? Por isso mesmo se emocionam as “mulherzinhas”, em efeito catártico, com as personagens de filmes de romance.
Por que falar através de personagens distantes se somos todos personagens de nós mesmos? “A vida é uma ópera e uma grande ópera”, disse Machado de Assis, não por ele mesmo, mas através do tenor italiano que falava a Bentinho em Dom Casmurro. Ontem, enquanto assistia a “QueroSer John Malkovich”, dirigido por Spike Jonze, me veio à mente a imagem de um grande palco em que estamos todos, humanos-marionetes, dotados de certa razão e guiados pelos instintos de nossa natureza. Marionetes, sim, como no filme, porque vivemos à mercê de certos acasos aos quais somos alheios e, ainda que sem um roteiro definitivo, protagonizamos nossa própria história.

Vês? Eu comecei a escrever achando que falaria de nós dois, mas deparei-me ao fim do texto com as mesmas questões existenciais de sempre. Quase que como Sofia (O Mundo de Sofia), encarando seu reflexo no espelho, absorta em suas reflexões e desligando-se do mundo à sua volta, me desliguei de ti. E nem sei mais o que eu queria dizer com tudo isso. Vai ver não era nada importante. Talvez eu quisesse compartilhar aquelas palavras bonitas que te escrevi um dia desses, mas elas não cabem mais, nem neste texto, nem em mim.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Simone de Beauvoir e eu

Quinta-feira. Dia escolhido aleatoriamente para a publicação de crônicas e contos no blog de uma estudante de jornalismo que reluta a adaptar-se ao mundo virtual. A jovem tem, guardados em uma caixa qualquer, diversos textos rabiscados, ao longo de sua vida, em bloquinhos, provas antigas, guardanapos de restaurantes e cafés e, não raro, nos cantos das páginas de livros escolares e textos acadêmicos. 

Ah! Como acha entediante transformar qualquer coisa em html (ou seja lá qual for a linguagem adequada para o virtual). Parece que vai-se embora boa parte de suas palavras quando elas saem do papel. Perdem o charme, a poesia. Antes não fossem lidas, ela pensa. Mas logo sente pena de quem fora ontem ao escrevê-las. Que pensaria dela, hoje, a criança que fora, se não compartilhasse com o mundo as palavras que brotaram do que tanto a sensibilizara à época? De solidão padeceriam o papel e o pensamento esquecidos. 

Decidida a não permitir que tal acontecesse, tornou à caixinha, separou uns papeis, mas frustrou-se. Nenhuma entre aquelas emoções transcritas traduzia seu atual estado de espírito. Não publicaria qualquer coisa que não a sensibilizasse, aqui, agora. Partiu então para o papel. Percorreu algumas linhas com o lápis. Quantas até aqui? Foi quando revelou-se, subitamente, o estado de seu espírito: sem querer falar, ele queria ouvir.

Largou o lápis, buscou o livro. Quem lhe falou foi Simone de Beauvoir. E elas compartilharam a tarde, as angústias, e discutiram a "Moral da Ambiguidade":

"Existir é fazer-se carência de ser, é lançar-se no mundo: pode-se considerar como sub-homens os que se ocupam em paralisar esse momento original; eles têm olhos e ouvidos, mas fazem-se desde a infância cegos e surdos, sem amor, sem desejo. Essa apatia demonstra um medo fundamental diante da existência, diante dos riscos e da tensão que ela implica; o sub-homem recusa essa paixão que é a sua condição de homem, o dilaceramento e o fracasso deste impulso em direção do ser que nunca alcança seu fim; mas com isso, é a existência mesmo que ele recusa".

A estudante alcançou a inspiração que lhe faltava. Simone, por sua vez, voltou à vida por um momento; ganhou nova oportunidade de se revelar. Viram-se felizes, uma em vida, outra na eternidade, pelo deleite dos encontros que a leitura proporciona.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Esperança

Foto crua, tirada por mim em meados de 2010.

Era um dia nublado. O céu era de um azul como do céu de dias mornos em cidade morna. Ele estava deitado na areia da praia, a mente em maré de ideias antigas.
(Tudo antigo, tudo antigo. Estou cansado. Cansado de tantos pensamentos já pensados. Tantas histórias repetidas, tantos rostos conhecidos entre os estranhos que passam... Ninguém que me acrescente algo, sequer uma piada engraçada ou qualquer coisa que não seja a despedida. E depois de fazer tantos amigos, a gente senta em frente ao mar e se dá conta da solidão, refletida pela imensidão das águas, como um espelho que nos escancara a verdade. Só. Sozinho. Finalmente – ou dolorosamente – só. Que restou de tantas conversas? A vida dá voltas, é o que dizem. E é preciso maestria para acompanhá-la em rodopios. Tantas voltas que se torna cada vez mais difícil manter-se de pé. E assim ela segue, como um redemoinho, engolindo os passarinhos cujas asas cansadas desistiram de voar. É cômico pensar em como tudo o que penso compreender hoje cabe na caixinha de madeira em meu criado-mudo. E há muito tempo não espio o que guardei lá dentro, a garantia ilusória de que alguma coisa eu compreendo...).
Então se fecharam os olhos que alternavam languidamente entre a visão das ondas e das nuvens. Ele finalmente adormeceu.
xxx

Sensação de frio. Algo gelado envolveu seus pés descalços. Algo inconstante. Só depois de alguns minutos abriu os olhos. Mesmo depois de perceber onde estava, permaneceu imóvel. Por quanto tempo dormira? Dez minutos, uma hora? Há muito tempo não acordava tão bem. Estranhamente, sentiu-se ainda melhor ao ver o braço esquerdo nu, ao sentir os bolsos vazios. Não precisaria mesmo do relógio, que o oprimiu por tanto tempo. Agora ele poderia sentir alguma paz. Realmente sentir aquele momento. Alheio ao tempo, mas completamente consciente de tudo ao seu redor. Consciente de si mesmo. Por um momento, nada tinha significado e, por isso mesmo, tudo fazia sentido. Já ia embora, quando seus olhos se detiveram em uma mancha vermelha na areia.  Hesitou por um instante antes de levar suas mãos até o que parecia ser uma rosa, pétalas aveludadas semienterradas.
(Isso não estava aqui antes).
Ele tinha certeza. Estivera deitado ali por tanto tempo antes de adormecer... Não havia ninguém por perto. Uma rosa simplesmente não brota da areia.
(Mas quem..? Não importa. Não será a primeira pergunta sem resposta. Nem a última).
Não pôde evitar espiar as curvas da praia vazia antes de caminhar até a escada mais próxima que levasse à civilização. No bolso, uma rosa vermelha.  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Descobri o café

Foto: Kimmy Simões*

Estou, agora mesmo, sentada em uma mesinha de madeira, ao lado de um pilão de moer grãos, no espaço mais aconchegante que encontrei neste estabelecimento curioso que chamam de “café”. É quarta-feira, meio de semana e já o segundo dia em que me recolho aqui, acolhida por este cantinho, com o caderno de cultura do jornal do dia aberto sobre a mesa. A capa apresenta os últimos lançamentos literários, os filmes em cartaz no cinema, a estreia de uma peça sobre a vida de Clarice Lispector, com a atriz Beth Goulart, entre títulos de crônicas e resenhas que preenchem as páginas adiante. Nada muito sedutor, não fosse por esse cheiro vindo do balcão, pelas pessoas passando lá fora, pelos murmurinhos do casal de idosos na mesa ao lado. Não fosse pelo fim de tarde e pela sensação de “dolce far niente” que me dá a essa hora. Não fosse pelo café.
Ah! O café... Cada um que adentra nesse universo extraordinário, um refúgio do caos lá fora, dá partida em um processo peculiar: a Hora do Café. Alguns são mais familiarizados com a coisa, os veteranos. Geralmente senhoras esbeltas de cabelo curto grisalho, batom avermelhado e óculos à la professora de francês, jovens adultos magricelas com camisa de botão entreaberta e óculos à la Woody Allen ou, na maioria das vezes, velhinhos solitários, calçando sandálias de dedo, com os óculos estrategicamente posicionados na ponta do nariz, os olhinhos miúdos percorrendo as páginas do jornal. E como para todo caso deve haver uma exceção (ou algumas exceções), cá estou eu, assumidamente seduzida pelo Ritual do Café, aos 19 anos. Eu, que até sair do Ensino Médio franzia a testa quando me ofereciam aquela bebida preta, amarga. Não que tenha sido há muito tempo, mas me pego, vez ou outra, imaginando quando fui “iniciada”. Daí lembro das madrugadas em claro, entre tratados políticos e ‘twittadas’, durante o primeiro ano de faculdade. Das cochiladas nos ônibus no trajeto entre um curso e outro. Lembro da falta de tempo, da falta de casa e de gente íntima por perto, enquanto durou a obsessão de caloura por excelência acadêmica.  Foi aí que descobri o café. Era o momento perfeito: um dia corrido chegando ao fim, a noite trazendo a segunda parte da jornada diária e, no meio,  a promessa de energias renovadas, a pausa de tudo que havia dentro de mim para dar espaço à contemplação de tudo que continuava lá fora.
Bons frequentadores de “cafés” são, portanto, ótimos observadores. Quando ali entramos nos tornamos artistas e, aproveitando o ócio criativo, somos filósofos, escritores, sociólogos... Psicólogos (por que não?!), já que passamos a identificar os “tipos” que por ali passam. Dos que estão ali só pelos quitutes, aos apressadinhos que chegam de paletó – “Sai um cafezinho rapidinho?”. Esses sentam no balcão – quando sentam –, soltam uma piadinha sem graça e tomam o líquido sagrado de um gole só. Uma verdadeira afronta, em minha opinião, aos demais ali presentes, verdadeiramente interessados, suponho, em apreciar todo o processo. Quem quiser entrar para o Clube, já sabe: vá sem pressa. Permita-se desfrutar desse tempo, seja acompanhado de um amor, de amigos ou de um bom livro. Mas vá de coração aberto, pronto para distrair-se e encantar-se com tudo ou com qualquer coisa. Quem sabe a gente não se encontre, qualquer dia, em um café por aí. “Lá está! Mais um que descobriu o café...”, eu estaria pensando, enquanto espiasse você decidir, com olhar contemplativo, entre Mocca e Cappuccino. 

*Kimmy é estudante de Rádio e Tv pela Ufpb e fotógrafa nas horas vagas. Obrigada por colaborar com a crônica de hoje :)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O cachorro

Este é Toy, meu companheiro há mais de dez anos. Não tive a oportunidade de fotografar Zorro, mas sua cor de carvão e olhos de mel são lembranças nítidas em minha memória. A vocês, caberá imaginá-lo :)

O texto a seguir foi escrito em 27 de dezembro de 2009 nas páginas de um diário pessoal. Decidi torná-lo público em homenagem ao cachorro do curta-metragem “Menino do Cinco” (Brasil, 20 min., 2012, fic.), exibido nesta última terça-feira na abertura da 7ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul*.



Sábado. 26 de dezembro de 2009. Natal.

Conheci alguém com olhos de mel. Tanto na cor, quanto na doçura.
Quando decidi passear com Toy e levá-lo até a casa da minha avó materna, onde estavam meus pais, não imaginava a surpresa que o destino me guardava. De onde teria vindo aquele cãozinho cor de carvão que me seguiu até o portão? Solitário, perdido, medroso, trêmulo e doce, extremamente doce. Tanto, que não se atrevia a mendigar o que fosse, mesmo evidentemente faminto.
Perdido... Talvez tivéssemos mais em comum do que eu poderia supor naquele instante. Talvez eu tenha me apegado tanto a ele por sentir intimamente que aquilo que transbordava de seus olhos melosos era, em essência, o mesmo que encharcava meu coração. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual decidi escondê-lo em uma caixa de papelão na mala do carro de meu pai para levá-lo à casa de minha avó materna, onde eu estava hospedada. E de ter, mais tarde, discutido com todos que queriam expulsá-lo dali. Que mais teria me feito percorrer aqueles becos interioranos sob chuva forte, já tarde da noite, batendo às portas da vizinhança com aquele cãozinho de olhos de mel em meu colo, na esperança de que alguém fosse também seduzido por ele e decidisse adotá-lo?
Como ele estava assustado!  Àquela hora minhas lágrimas já se misturavam às gotas de chuva e meu desespero maior era pensar que ele tivesse um lar e alguém procurando por ele em algum lugar. Afinal, ele estava tão bem cuidado... Que medo tive de estar fazendo mal àquela criaturinha indefesa! Quando finalmente alguém abriu a porta e demostrou interesse em criá-lo, estremeci. Não suportei a ideia de deixá-lo, como se eu o estivesse abandonando. Depois, fora daquelas circunstâncias, percebi como eram egoístas minhas expectativas. Mas já estava tão ligada a ele, e ele a mim, que me desesperava imaginá-lo ali, na rua onde vivi minha infância, hoje há milhares de quilômetros de onde moro.
Àquela altura minhas boas intenções já tinham transformado nossa viagem em uma grande confusão. Minha avó, cujo temperamento naturalmente implicante piorou com a idade, se enfureceu ao ponto de me rogar pragas. Vovô, ao contrário, demonstrou compaixão com seu ar de cansaço e olhos doces tais como os do cãozinho. Em razão da fúria da esposa, compreendo que ele tenha preferido a imparcialidade e agradeço por isso. Sucedeu que decidiram deixar Zorro (como o apelidara meu cunhado) na casa da vizinha e me convenceram de que voltaríamos pela manhã para buscá-lo. Talvez até o levássemos conosco a João Pessoa, como eu havia proposto, para que ficasse sob os cuidados de meu amigo Arthur, apaixonado por animais e pai de dois labradores apaixonantes.
Na manhã seguinte, o céu de um azul peculiar a manhãs que seguem noites chuvosas poderia ser prenúncio de um belo dia, não fosse aquela tensão suspensa no ar. Não demorei a ir até a vizinha. Lá estava Zorro, a língua pendurada como se sorrisse. Entre lambidos e latidos, senti o amor do reencontro. Dói lembrar que prometi voltar logo. Dói pensar que não tive sequer a oportunidade de me despedir antes de viajar. Não poderia supor, ao afastá-lo do portão para poder sair, ser aquela a última vez em que nossos olhares se cruzariam.
Eu o protegi e alimentei por um tempo curtíssimo e ele provavelmente não sentiria minha falta mais tarde. Tão frágil que era, queria apenas proteção. Mal sabe ele que aqueles olhos de mel ficariam gravados em mim. Soube depois que ele foi levado por um fazendeiro. Meu pai até garantiu ter conversado com o homem e que Zorro estaria em boas mãos. Lá ele seria feliz. Foi no que me forcei a acreditar. Já aprendi que o tempo cura tais angústias, mas sei que a dúvida sobre seu paradeiro me atormentará. Escrevo para concretizar minha esperança e porque não quero esquecer aqueles olhos, nem o amor que eles doavam, sem pedir nada em troca. Não quero esquecer a impressão que tive de ter perdido a companhia não somente de um cãozinho carismático, mas de um ser de espírito iluminado, capaz de oferecer o que a maioria de nós parece negligenciar no dia a dia: amor. Simplesmente amor.
Ele me deu esperança. Esperança. Ele a plantou em mim. E sinto que, enquanto eu guardar a lembrança dele, ela permanecerá viva. Assim, quem sabe, eu possa semeá-la despretensiosamente, como ele fez. Talvez outras pessoas possam sentir, através de mim, o que eu senti ao enxergar além dos olhos de mel.

Certa vez ouvi falar que os olhos são as janelas da alma. Zorro me trouxe essa convicção.  

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Toque no braço dela

Ilustração de Aline Beuttenmüller*

Ele me pareceu poeta, pelo toque no braço dela.


Ele foi devagarzinho. Começou pela ponta do dedo médio. Foi subindo. Seu dedo se arrastando pelas mãos da moça, pelo antebraço. Desceu com o mesmo cuidado. Talvez, não estivesse de olhos fechados, tão concentrada, ela tivesse sido indiferente àquele toque. Ah! Mas lá estavam os dois: em um café diante do sol que se punha atrás do rio. Lá estavam, como se não fosse meio de semana, sentados em um banquinho de madeira, esperando o pedido chegar.

Acho importante retroceder um pouco e descrever tal cena com maior riqueza nos detalhes, para tentar fazer com que você compreenda porque um gesto tão comum, tão banal, foi dignado a tamanha ênfase. Pois bem. Imagine uma cidade comum, litorânea, pessoas comuns passeando, turistas com passinhos apressados, temendo perder a entrada da canoa com o saxofonista que toca o Bolero de Ravel para acompanhar o pôr-do-sol na praia do Jacaré já há tantos anos. O sax começou seus trabalhos, o sol foi se despedindo, as pessoas se tranquilizando aos poucos, alguns flashs, sorrisos. Cenário comum naquela parte da capital paraibana. E a tarde já ia com cara de noite quando eles passaram. Eu, como bom observador, sentava no banco do outro lado da passarela com o jornal aberto à minha frente, cobrindo parte do rosto. Estratégia antiga (e muito eficaz) para velhos que aproveitam seus dias vendo os outros passarem. Pararam diante de um café, desses forçadamente regionais, com forno de tapioca na frente para atrair os turistas. Primeiro, ela chamou minha atenção ao correr dali em direção a uma vitrola exposta na lojinha da esquina. Ele foi em seguida, parecendo encantado pelo encanto que aquele objeto provocava nela. Não sei o que se passou depois, minha audição não anda lá tão boa, mas retornaram ao café, sentaram de frente ao balcão e eu já não conseguia desviar os olhos. Disseram quase nada, sorriram para a moça de avental, esperaram qualquer coisa que tivessem pedido.

 Vi que o dedo começou sua jornada: de cima para baixo, de baixo para cima. De uma maneira esquisita, aquilo me hipnotizava. Ela: olhos fechados, boca semiaberta, cabelo desgrenhado. O queixo dele em seu ombro, com os lábios como que querendo contar algo bonito. Pois que não contasse nada! Bastava aquele gesto, pequenininho. O passeio que o dedo fazia entre os pelos do braço dela. Era como poesia. Nunca poderei ter certeza, mas senti que, por dentro, ela se ria com a leveza do toque, enquanto ele se extasiava com o calor da pele dela.

De longe, eu também ria. Ah! Que vontade que tive de atravessar essa distância que separa os estranhos e certificar-me de que eles entendiam a grandeza daquele momento. Mas como todos que passam, partiram. Vi os dois desaparecerem, a boca cheia com as palavras que não disse. E essa sensação gostosa que o fim de tarde traz de que é preciso pouco para ser feliz. 

*Aline é ilustradora e é o talento por trás da marca de camisetas e acessórios 266 t-shirts. Muito obrigada por ter topado ilustrar a crônica de hoje :)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Primeiras impressões da Mostra Audiovisual do Festival Mundo 2012


Desde o dia primeiro deste mês a VIII Edição do Festival Mundo vem trazendo inúmeras atividades culturais na Usina Cultural Energisa. Como estou participando da Imprensa Colaborativa , ontem tive a oportunidade de acompanhar o primeiro dia da Mostra Audiovisual, que este ano apresenta “Experimentando Cao Guimarães”. Foi a primeira vez que vi um filme dele, por isso sinto-me livre para discorrer sobre “primeiras impressões”. Mas alerto: não há nada de simplista nele, e o que vem a seguir é fruto de uma verdadeira imersão que só o cinema, quando os elementos certos são explorados, é capaz de provocar.

Foto: site oficial de Cao Guimarães*
“Solidão é a gente demais”.

Disse-nos Guimarães Rosa. E foi assim que Cao Guimarães decidiu começar a nos contar a história do Sr. Dominguinhos, homem de 72 anos que vive isolado em uma caverna nas Minas Gerais.

Em “A Alma do Osso”, o cineasta e artista plástico nos provoca o tempo todo. Eu poderia começar a explicar o porquê a partir da trilha sonora genialmente elaborada para o filme pela dupla O Grivo. Uma alternância entre cordas, tambores, sopro e ruídos da natureza mixados e milimetricamente calculados para expressarem-se como ruídos.  Tudo milimetricamente calculado para perturbar o espectador. Ou talvez eu começasse pelos efeitos visuais, pela brincadeira feita com a textura da imagem, pela alternância de cores, pelo cenário ermo, bucólico, tão real e, ao mesmo tempo, quase mítico, tal qual a figura do protagonista. Mas deixarei tais aspectos estéticos para os especialistas. Que se arrisquem os técnicos, os mais treinados, pois os aspectos estéticos no filme de Cao não me parecem fáceis de traduzir.

Como comentou depois da sessão Mariah Benaglia, uma das responsáveis pelo Tintin Mostra Mundo 2012, assistir a um filme dele é uma verdadeira imersão. Ele nos faz entrar em uma realidade que nos parece distante, então nos descobrimos enganados e aquela imagem primeira se desconstrói e se reinventa. Perturbador? Sim. Mas não é isso que se espera de um filme de produção independente? Qualquer outra coisa não é cinema experimental, é “Sessão da Tarde”. Cinema é mesmo imersão. Cinema é inquietude. É essa sensação que dá quando se finda a película e permanece a agonia, a vontade de desvendar os enigmas que a história que acabamos de ver nos lançou.

Em um filme que usa a palavra como último recurso, uma primeira expressão do protagonista nos apresenta um homem que imita a natureza e que é, ao mesmo tempo, por ela moldado. Um ermitão, uma figura distante, que faz um espectador “civilizado” se questionar sobre a relação que tem com o mundo ao seu redor. “Que diferencia esse homem de qualquer bicho com que convive?”, “Que lhe parece importante ou banal?”, “Por que a exclusão?”, foram algumas das questões que me invadiram a mente nos primeiros momentos. 

Então o personagem canta. Depois fala. Depois conta. E para isso tem público.

Sr. Dominguinhos aparece agora como um ser sociável, contando a um bando de crianças a história de um homem que enterrou uns ossos humanos que encontrou na estrada e, por isso, salvou-se de um raio ao qual deveria sua morte.  A história vai parecer confusa, mas quando ele diz “Os ossos que ele enterrou não deixou ele morrer(...)” , a gente percebe do que se trata a anedota. Aquele homem, antes tão distante, indecifrável, se mostra preocupado em nos mostrar a importância do legado que deixamos em vida. Aquela história era o seu legado para quem o escutava. Aquele era o seu legado para quem o assistiria.

Ele não é mais o homem isolado que nega o outro e a vida em sociedade. Ele enaltece o dinheiro. Cumprimenta o Governo. Compara o Real ao Cruzeiro na tentativa de descobrir quanto vale o dólar que tem escondido na “caverna” onde vive. Para que? Para dizer àquele que segura a câmera que passe ali depois, quando ele já tiver morrido, para pegar aquela nota e um canivete que ele guarda junto.

Sr. Dominguinhos é um sobrevivente. Conta como aguentava os choques elétricos de quando vivia internado. Aqui, eu já via sua vida sob uma ótica completamente diferente da primeira impressão de exclusão. Eu o via como um homem livre. Não como um solitário esperando a morte chegar, mas como um dissidente aproveitando a vida que ainda tinha pela frente.  No começo, eu enxergava no silêncio dele a desesperança, o desapego, a indiferença. E, aos poucos, essa imagem virou ao avesso e aquelas minhas perguntas foram sendo respondidas (e reconstruídas).

Só fiquei triste ao saber pela Mariah, durante o debate depois do filme, que Sr. Dominguinhos morreu ano passado, alguns meses depois de ser removido para uma instituição do governo a fim de receber tratamento. Que o deixassem onde estava, ora!  No lugarzinho que tinha escolhido como refúgio, para despedir-se do mundo de longe. Pois haja coragem em um homem para enfrentar a si mesmo de tal maneira! Já dizia Guimarães Rosa, “solidão é a gente demais”...

No mais, fica a dica para assistir hoje (terça-feira, 06) à exibição de “Andarilho”, do mesmo diretor, às 20h na Sala Multimídia da Usina Cultural Energisa. Depois da surpresa de ontem, não sei o que me espera, mas garanto que valeu a pena ter experimentado Cao Guimarães.

Para a programação completa do Festival Mundo 2012

*Conheça um pouco mais sobre Cao Guimarães

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Para começar, o começo!

Quando o primeiro passo é dado, resta-nos encontrar um tanto de coragem para seguir em frente.
Foto: Victor Costa da Cunha Lima

Para um bebê, o primeiro passo significa tudo. Não que ele esteja consciente da magnitude desse gesto, tão espontâneo nessa fase da vida. Mas não será esse o primeiro grande ato de uma vida inteira? Mal sabe aquela criaturinha que acaba de protagonizar o episódio mais importante de sua existência: o prenúncio de um tropeço. Depois daqui, ele estará pronto para enfrentar o que vier. O fim da amamentação, o primeiro dia no Jardim de Infância, a imagem da mãe indo embora pelo corredor de flores artificiais, enquanto ela faz força para segurar as lágrimas e evita olhar para trás. É o tropeço a base de tudo. Sem ele, nunca teríamos chegado a lugar nenhum. Uma criança se atreve a levantar sem saber como aquilo funciona. E tropeça. Se ri, ou se chora, pouco importa. Ela não teve medo. 
Certo, com o tempo, aprendemos que é saudável sentir um pouco de medo. Ele pode nos poupar de enrascadas das quais, provavelmente, não levaríamos só lembranças de tropeços. Mas e quando o medo paralisa? Quem nunca se viu imóvel diante de um começo? Tudo na vida requer uma dose de coragem: começar um blog, uma carta, destinar um e-mail. Começar a tocar um instrumento? Um ato heroico! Você vai parecer ridículo, vai incomodar a vizinha, afastar alguns amigos, mas terá que começar de algum lugar. Mesmo que seja do ruído. 
Esse pode não ser o seu caso, mas estou certa de que há um caso aí ainda não resolvido. Então, na dúvida, faça como a criança: levante com um impulso firme e um sorriso leve, como quem não tem nada a perder. De preferência, tenha por perto quem possa segurar sua mão, caso o caminho seja íngreme e você titubeie. Se não tiver essa sorte, ainda assim, não há porque temer o tropeço. Eu, por exemplo, não tivesse finalmente decidido embarcar, não teria chegado a 331 caracteres. Não teria chegado a você.
E ainda que nada disso tenha lhe acrescentado muita coisa, foi o meu primeiro passo. E esse é só o começo.