Desde
o dia primeiro deste mês a VIII Edição do Festival Mundo vem trazendo inúmeras
atividades culturais na Usina Cultural Energisa. Como estou participando da
Imprensa Colaborativa , ontem tive a oportunidade de acompanhar o primeiro dia
da Mostra Audiovisual, que este ano apresenta “Experimentando Cao Guimarães”. Foi
a primeira vez que vi um filme dele, por isso sinto-me livre para discorrer
sobre “primeiras impressões”. Mas alerto: não há nada de simplista nele, e o
que vem a seguir é fruto de uma verdadeira imersão que só o cinema, quando os
elementos certos são explorados, é capaz de provocar.
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Foto: site oficial de Cao Guimarães* |
“Solidão
é a gente demais”.
Disse-nos
Guimarães Rosa. E foi assim que Cao Guimarães decidiu começar a nos contar a
história do Sr. Dominguinhos, homem de 72 anos que vive isolado em uma caverna
nas Minas Gerais.
Em
“A Alma do Osso”, o cineasta e artista plástico nos provoca o tempo todo. Eu
poderia começar a explicar o porquê a partir da trilha sonora genialmente elaborada
para o filme pela dupla O Grivo. Uma alternância entre cordas, tambores, sopro
e ruídos da natureza mixados e milimetricamente calculados para expressarem-se
como ruídos. Tudo milimetricamente
calculado para perturbar o espectador. Ou talvez eu começasse pelos efeitos
visuais, pela brincadeira feita com a textura da imagem, pela alternância de
cores, pelo cenário ermo, bucólico, tão real e, ao mesmo tempo, quase mítico,
tal qual a figura do protagonista. Mas deixarei tais aspectos estéticos para os
especialistas. Que se arrisquem os técnicos, os mais treinados, pois os
aspectos estéticos no filme de Cao não me parecem fáceis de traduzir.
Como
comentou depois da sessão Mariah Benaglia, uma das responsáveis pelo Tintin
Mostra Mundo 2012, assistir a um filme dele é uma verdadeira imersão. Ele nos
faz entrar em uma realidade que nos parece distante, então nos descobrimos
enganados e aquela imagem primeira se desconstrói e se reinventa. Perturbador?
Sim. Mas não é isso que se espera de um filme de produção independente?
Qualquer outra coisa não é cinema experimental, é “Sessão da Tarde”. Cinema é mesmo
imersão. Cinema é inquietude. É essa sensação que dá quando se finda a película
e permanece a agonia, a vontade de desvendar os enigmas que a história que
acabamos de ver nos lançou.
Em
um filme que usa a palavra como último recurso, uma primeira expressão do
protagonista nos apresenta um homem que imita a natureza e que é, ao mesmo
tempo, por ela moldado. Um ermitão, uma figura distante, que faz um espectador
“civilizado” se questionar sobre a relação que tem com o mundo ao seu redor. “Que
diferencia esse homem de qualquer bicho com que convive?”, “Que lhe parece
importante ou banal?”, “Por que a exclusão?”, foram algumas das questões que me
invadiram a mente nos primeiros momentos.
Então
o personagem canta. Depois fala. Depois conta. E para isso tem público.
Sr.
Dominguinhos aparece agora como um ser sociável, contando a um bando de
crianças a história de um homem que enterrou uns ossos humanos que encontrou na
estrada e, por isso, salvou-se de um raio ao qual deveria sua morte. A história vai parecer confusa, mas quando ele
diz “Os ossos que ele enterrou não deixou ele morrer(...)” , a gente percebe do
que se trata a anedota. Aquele homem, antes tão distante, indecifrável, se
mostra preocupado em nos mostrar a importância do legado que deixamos em vida.
Aquela história era o seu legado para quem o escutava. Aquele era o seu legado
para quem o assistiria.
Ele
não é mais o homem isolado que nega o outro e a vida em sociedade. Ele enaltece
o dinheiro. Cumprimenta o Governo. Compara o Real ao Cruzeiro na tentativa de
descobrir quanto vale o dólar que tem escondido na “caverna” onde vive. Para que?
Para dizer àquele que segura a câmera que passe ali depois, quando ele já tiver
morrido, para pegar aquela nota e um canivete que ele guarda junto.
Sr.
Dominguinhos é um sobrevivente. Conta como aguentava os choques elétricos de
quando vivia internado. Aqui, eu já via sua vida sob uma ótica completamente
diferente da primeira impressão de exclusão. Eu o via como um homem livre. Não
como um solitário esperando a morte chegar, mas como um dissidente aproveitando
a vida que ainda tinha pela frente. No
começo, eu enxergava no silêncio dele a desesperança, o desapego, a
indiferença. E, aos poucos, essa imagem virou ao avesso e aquelas minhas
perguntas foram sendo respondidas (e reconstruídas).
Só
fiquei triste ao saber pela Mariah, durante o debate depois do filme, que Sr.
Dominguinhos morreu ano passado, alguns meses depois de ser removido para uma
instituição do governo a fim de receber tratamento. Que o deixassem onde
estava, ora! No lugarzinho que tinha
escolhido como refúgio, para despedir-se do mundo de longe. Pois haja coragem
em um homem para enfrentar a si mesmo de tal maneira! Já dizia Guimarães Rosa,
“solidão é a gente demais”...
No
mais, fica a dica para assistir hoje (terça-feira, 06) à exibição de
“Andarilho”, do mesmo diretor, às 20h na Sala Multimídia da Usina Cultural
Energisa. Depois da surpresa de ontem, não sei o que me espera, mas garanto que
valeu a pena ter experimentado Cao Guimarães.