O
texto a seguir foi escrito em 27 de dezembro de 2009 nas páginas de um diário
pessoal. Decidi torná-lo público em homenagem ao cachorro do curta-metragem
“Menino do Cinco” (Brasil, 20 min., 2012, fic.), exibido nesta última terça-feira na abertura da
7ª Mostra Cinema e Direitos Humanos na América do Sul*.
Sábado.
26 de dezembro de 2009. Natal.
Conheci
alguém com olhos de mel. Tanto na cor, quanto na doçura.
Quando
decidi passear com Toy e levá-lo até a casa da minha avó materna, onde estavam
meus pais, não imaginava a surpresa que o destino me guardava. De onde teria
vindo aquele cãozinho cor de carvão que me seguiu até o portão? Solitário,
perdido, medroso, trêmulo e doce, extremamente doce. Tanto, que não se atrevia
a mendigar o que fosse, mesmo evidentemente faminto.
Perdido...
Talvez tivéssemos mais em comum do que eu poderia supor naquele instante.
Talvez eu tenha me apegado tanto a ele por sentir intimamente que aquilo que
transbordava de seus olhos melosos era, em essência, o mesmo que encharcava meu
coração. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual decidi escondê-lo em uma
caixa de papelão na mala do carro de meu pai para levá-lo à casa de minha avó
materna, onde eu estava hospedada. E de ter, mais tarde, discutido com todos
que queriam expulsá-lo dali. Que mais teria me feito percorrer aqueles becos
interioranos sob chuva forte, já tarde da noite, batendo às portas da
vizinhança com aquele cãozinho de olhos de mel em meu colo, na esperança de que
alguém fosse também seduzido por ele e decidisse adotá-lo?
Como
ele estava assustado! Àquela hora minhas
lágrimas já se misturavam às gotas de chuva e meu desespero maior era pensar
que ele tivesse um lar e alguém procurando por ele em algum lugar. Afinal, ele
estava tão bem cuidado... Que medo tive de estar fazendo mal àquela criaturinha
indefesa! Quando finalmente alguém abriu a porta e demostrou interesse em criá-lo,
estremeci. Não suportei a ideia de deixá-lo, como se eu o estivesse abandonando.
Depois, fora daquelas circunstâncias, percebi como eram egoístas minhas
expectativas. Mas já estava tão ligada a ele, e ele a mim, que me desesperava
imaginá-lo ali, na rua onde vivi minha infância, hoje há milhares de
quilômetros de onde moro.
Àquela
altura minhas boas intenções já tinham transformado nossa viagem em uma grande
confusão. Minha avó, cujo temperamento naturalmente implicante piorou com a
idade, se enfureceu ao ponto de me rogar pragas. Vovô, ao contrário, demonstrou
compaixão com seu ar de cansaço e olhos doces tais como os do cãozinho. Em
razão da fúria da esposa, compreendo que ele tenha preferido a imparcialidade e
agradeço por isso. Sucedeu que decidiram deixar Zorro (como o apelidara meu
cunhado) na casa da vizinha e me convenceram de que voltaríamos pela manhã para
buscá-lo. Talvez até o levássemos conosco a João Pessoa, como eu havia
proposto, para que ficasse sob os cuidados de meu amigo Arthur, apaixonado por
animais e pai de dois labradores apaixonantes.
Na
manhã seguinte, o céu de um azul peculiar a manhãs que seguem noites chuvosas
poderia ser prenúncio de um belo dia, não fosse aquela tensão suspensa no ar.
Não demorei a ir até a vizinha. Lá estava Zorro, a língua pendurada como se
sorrisse. Entre lambidos e latidos, senti o amor do reencontro. Dói lembrar que
prometi voltar logo. Dói pensar que não tive sequer a oportunidade de me
despedir antes de viajar. Não poderia supor, ao afastá-lo do portão para poder
sair, ser aquela a última vez em que nossos olhares se cruzariam.
Eu
o protegi e alimentei por um tempo curtíssimo e ele provavelmente não sentiria
minha falta mais tarde. Tão frágil que era, queria apenas proteção. Mal sabe
ele que aqueles olhos de mel ficariam gravados em mim. Soube depois que ele foi
levado por um fazendeiro. Meu pai até garantiu ter conversado com o homem e que
Zorro estaria em boas mãos. Lá ele seria feliz. Foi no que me forcei a
acreditar. Já aprendi que o tempo cura tais angústias, mas sei que a dúvida
sobre seu paradeiro me atormentará. Escrevo para concretizar minha esperança e
porque não quero esquecer aqueles olhos, nem o amor que eles doavam, sem pedir
nada em troca. Não quero esquecer a impressão que tive de ter perdido a
companhia não somente de um cãozinho carismático, mas de um ser de espírito
iluminado, capaz de oferecer o que a maioria de nós parece negligenciar no dia
a dia: amor. Simplesmente amor.
Ele
me deu esperança. Esperança. Ele a plantou em mim. E sinto que, enquanto eu
guardar a lembrança dele, ela permanecerá viva. Assim, quem sabe, eu possa
semeá-la despretensiosamente, como ele fez. Talvez outras pessoas possam
sentir, através de mim, o que eu senti ao enxergar além dos olhos de mel.
Certa
vez ouvi falar que os olhos são as janelas da alma. Zorro me trouxe essa convicção.
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